CARTA CARDINAL 14

O GORILA INVISÍVEL

Cegueira por desatenção

Numa importante pesquisa, um vídeo mostra dois grupos de jovens (um de camiseta preta, outro de camiseta branca) em movimento, passando bolas de basquete entre si [1]. O pesquisador pede ao observador que conte o número de passes dos jovens de camiseta branca. Durante os passes, um gorila entra no grupo, vira para a câmera, bate no peito e se retira. Surpreendentemente, cerca de 50% das pessoas pesquisadas não veem o gorila. Isso se deve a um traço da mente humana: quando as pessoas focam num aspecto do seu campo de visão, tendem a não perceber objetos inesperados, em muitos casos salientes e potencialmente importantes. A visão torna-se seletiva. É a chamada cegueira por desatenção[2]. Este fenômeno tem graves implicações para decisões de investimento, bem como para decisões estratégicas das empresas.

No mundo dos investimentos em ações, consideramos como cegueira por desatenção quando os investidores focam em fatores efêmeros de curto prazo, deixando de considerar fatores estruturais que definirão o sucesso da empresa nos anos futuros. Por exemplo, os investidores tendem a reagir negativamente ao resultado trimestral da empresa pior que o esperado pelo consenso, mesmo que sua estratégia de negócio esteja melhorando.

 

Evitando a cegueira

Nós buscamos minimizar o risco da cegueira por desatenção de duas maneiras. Primeiro, focamos nos fatores estruturais da sua operação que nos indicarão a capacidade dela gerar caixa sustentavelmente num horizonte de tempo relativamente longo – pelo menos três anos. É daí que perceberemos se a empresa está a caminho de criar ou destruir valor.

Esses fatores incluem a qualidade da sua estratégia de negócio, suas vantagens competitivas, o ambiente competitivo (se hostil ou estável), sinais de novos entrantes com novos modelos de negócio que representem ameaças competitivas, qualidade da execução da estratégia pelos executivos (uma boa estratégia com uma má execução destrói valor), dinâmica de governança corporativa nos seus três blocos (acionistas, conselho de administração e executivos), entre outros fatores.

A segunda maneira de evitar a cegueira é seguirmos um processo formal de investimento, que inclui checklists obrigatórios. Dessa forma, minimiza-se o risco de a análise tornar-se seletiva apenas no que desperta mais nossa atenção, garantindo um aspecto fundamental: a visão do conjunto. Por exemplo, se estamos inclinados a investir
numa empresa, buscamos opiniões contrárias (negativas) às nossas. Tais informações poderá nos trazer um alerta sobre um risco que não havíamos percebido.

Nesse sentido, explicamos a seguir nossa estratégia de investimento em Linx que, iniciada em meados de 2017, baseou-se na convicção em relação às novas vias de crescimento, apesar da fraqueza do varejo (sua base de receita) numa economia ainda combalida.

 

Figura 1: Evolução do preço da ação de Linx vs o IBX-100 –
Desde o início do ciclo de investimento da Cardinal Partners

Fonte: Bloomberg e Cardinal Partners.

 

Por que gostamos do setor de tecnologia?

O setor de tecnologia nos atrai por dois vetores de crescimento. Um deles é a baixa produtividade da economia brasileira, que sugere uma contínua e crescente demanda por tecnologia pelo menos nos próximos dez anos. Em adição, a penetração de tecnologia cresce em ritmo exponencial na vida das pessoas e nas empresas. Nestas, a tecnologia deixa de ser uma área de suporte, passando a integrar o coração da estratégia de negócios. Por exemplo, inteligência artifi cial no atendimento a clientes em saúde, retail intelligence para maximizar estratégias comerciais no varejo e aprendizagem adaptativa em educação, entre outros.

 

Por que gostamos de Linx?

A Linx é uma empresa de software especializada no varejo, no qual é líder isolada, com uma participação de mercado de aproximadamente 40%. Gostamos dela por duas razões: (A) fortes vantagens competitivas e (B) uma estratégia de negócio que tende a gerar valor. Sobre a primeira razão (A), no Moat Score [3], Linx aparece na terceira posição, com nota 6,0 (consideramos como boas notas a partir de 3,0), como indica a Figura 2. Em particular destacamos três vantagens competitivas. Primeiro, ela desfruta de um forte switching cost , ou um elevado custo de mudança para o cliente pelo seu alto grau de dependência dos serviços da Linx. Segundo, ela tem uma combinação de escala e distribuição robustas. Ela é líder absoluta em varejo, com cerca de 40% de market share, atuando com uma distribuição própria com alto grau de especialização, num setor em que o custo de aquisição de cliente é elevado pela sua capilaridade. Terceiro, ela tem um elevado know how de aquisição de novas empresas, que tem sido um importante fator de sucesso na sua história de crescimento. Desde o seu IPO em 2013, a empresa fez 16 aquisições, somando um desembolso de R$ 462 milhões[4], para uma empresa que faturou R$ 784 milhões em 2018.

 

Figura 2: Moat Score da Cardinal Partners (pontos)

Fonte: Cardinal Partners.

 

Em relação à segunda razão de gostarmos de Linx (B), sua estratégia de negócios não apenas fortalece as vantagens competitivas que possui, como cria novas vias de crescimento, às vezes penetrando novos mercados adjacentes, como no atual caso de adquirência, como detalharemos na próxima seção.

 

A estratégia de negócios da Linx

O negócio básico da empresa é o serviço de software de gestão (ERP) e software para pontos de venda (POS). Daí resulta uma das suas mais fortes vantagens competitivas, o switching cost . Se por um lado ERP e POS apresentam uma forte vantagem competitiva, por outro, elas também indicam duas ameaças. Primeiro, a receita desses produtos tende a crescer a taxas baixas ou até negativas (especialmente POS, que tende a desaparecer pela transformação tecnológica pela qual passa o varejo). Em adição, tais produtos tendem a se comoditizar, enfraquecendo seu switching cost com o cliente.

Por isso, a estratégia de negócio da empresa tem focado em oferecer soluções adicionais de maior valor agregado e que complementam seus serviços básicos, abraçando de maneira mais ampla seu cliente, preservando assim sua força competitiva, já que é difícil um concorrente ser capaz de oferecer um leque de produtos tão amplo como o dele. Isso traz a oportunidade de aumento de penetração no cliente (maior share of wallet ) pela possibilidade de venda cruzada entre o serviço básico e os de maior valor agregado. Se os serviços básicos permitem ao cliente manter sua eficiência operacional, os novos serviços vão além: ajudam o varejista a alavancar suas vendas.

Sumarizamos essas novas ofertas de soluções em três blocos. O primeiro é a gestão de multicanalidade (omnichannel ), que permite ao varejista fazer a gestão integrada do canal físico e do e-commerce. Exemplos: o consumidor compra pela internet e prefere retirar na loja; numa venda pela internet o varejista precisa definir de qual de seus estoques enviará o produto (de uma loja física ou de um de seus centros de distribuição), entre outras. Esse produto gera dois importantes benefícios de eficiência: de gestão de estoque e tributária. Pela sua elevada complexidade, é uma solução que tende a fortalecer o vínculo do cliente com a Linx.

O segundo bloco é o de meios de pagamento. Desde 2017, está em curso um acordo entre Linx e a empresa de adquirência Rede, uma das incumbentes, pela qual se busca uma venda cruzada: a Rede tem a oportunidade de aumentar sua penetração na base de clientes da Linx com o aluguel de sua maquininha; a Linx tem a oportunidade de aumentar sua penetração na base de clientes da Rede, vendendo suas soluções de software . Em outubro de 2018, a Linx entrou no mercado de adquirência com a estratégia Linx Pay, que discutiremos adiante.

O terceiro bloco é retail intelligence , serviço pelo qual a Linx usa big data para oferecer ferramentas de otimização de estratégia de venda tanto para o varejista como para o fabricante. Por exemplo, uma drogaria poderá saber o perfil de consumo de cada loja sua, construindo promoções específicas para aquele ponto de venda; o fabricante poderá ter acesso ao comportamento de compra por produto por ponto de venda, usando esta informação para melhorar seu mix por loja e montar promoções mais eficazes por loja. A Linx tem uma vantagem natural neste serviço pela sua grande presença no varejo, dando-lhe acesso a uma base de dados maior do que seus concorrentes.

Esses três blocos de serviços já representam cerca de 20% da receita da empresa, mesmo estando em estágio relativamente inicial de desenvolvimento, tendo o potencial de ultrapassar 100% nos próximos anos. Todas elas são vias desafiadoras pelo elevado nível de competição, sendo crítica a qualidade da execução e o time to market (uma nova solução oferecida ao cliente com atraso em relação aos concorrentes pode ser inócua, e vice-versa).

 

A estratégia Linx Pay em meios de pagamento

Nos últimos dez anos, o ambiente competitivo no mercado de adquirência vem passando por profundas transformações, em que as vantagens competitivas mudaram. Até dez anos atrás, havia duas principais vantagens competitivas: barreiras regulatórias e distribuição via agência bancária de bancos comerciais. Agora, as vantagens passaram a ser a capacidade de oferta de soluções de tecnologia integradas para o varejista e distribuição por outros canais, não só por agência bancária (que permanece indiscutivelmente um canal competitivo). Antes, o varejista era restrito na sua escolha, agora ele ganhou muito poder de barganha.

O que era um mercado restrito ao serviço de adquirência – captura de transação com cartões de lojistas e envio de informações para as bandeiras – vem se transformando num mercado integrado de meios de pagamento com elevado conteúdo tecnológico, de onde podem surgir operações completas de bancos digitais. O varejista não se satisfaz apenas com uma maquininha que funcione e com serviços bancários básicos como antecipação de recebíveis. Ele busca também tecnologia que lhe ofereça eficiência no seu negócio e o ajude a alavancar suas vendas, ou seja, tecnologia para uma operação de varejo.

Em retrospectiva, até 2009, os incumbentes em adquirência eram Cielo (controlado por Bradesco e Banco do Brasil), tendo a exclusividade na captura de cartões Visa, e Rede (controlada pelo Itaú), com exclusividade na captura de cartões Mastercard. Naquele ano, o Banco Central derrubou esta barreira regulatória. Rapidamente, surgiu um terceiro incumbente, a Getnet, controlada pelo Santander, já que a distribuição por agência bancária permanecia uma vantagem importante.

A partir de 2015, começou a ocorrer a expansão de novos entrantes com novos modelos de negócios, indicando o enfraquecimento relativo da vantagem de distribuição por agência bancária (Figura 3).
A PagSeguro inaugurou um novo modelo de negócio oferecendo a venda de maquininha (ao invés de aluguel) e fazendo distribuição digital, alavancando-se da forte presença de seu controlador UOL neste canal. Isso viabilizou o segmento de microvarejistas, que estão fora do sistema bancário (80% deles não têm conta bancária). A Stone entrou no mercado montando uma rede de distribuição própria, com foco no atendimento de qualidade e com resposta rápida ao cliente, além de um alto teor de tecnologia nas soluções oferecidas.

 

Figura 3: Market share do mercado de adquirência

Fonte: Cielo.

 

Neste contexto, a Linx Pay entra com duas características que consideramos altamente competitivas: uma distribuição já existente no varejo (mais de 100 mil varejistas que já usam um leque de produtos de software , ao qual a adquirência se soma); e uma grande capacidade de desenvolver tecnologia para o varejo, sua especialização. Suas soluções oferecidas em adquirência tendem a ser competitivas, pois ela já tem a expertise de serviços complementares como TEF, conciliação e split , entre outros [5].

Com isso, a entrada da Linx no mercado de adquirência fortalece suas vantagens competitivas como um todo, pois ela consegue apresentar uma oferta integrada ao varejista, incluindo desde o serviço básico de ERP e POS, passando por novas soluções como onmichannel e retail intelligence , e agora adquirência. Ao mesmo tempo, Linx Pay representa uma nova via de crescimento robusta em tamanho, com sinergia por ser um mercado adjacente, e com retorno marginal elevado por já ter acesso ao cliente. Por isso, vislumbramos uma criação de valor relevante desta via nos próximos 3 a 5 anos.

A acirrada competição existente no mercado de adquirência não diminui a atratividade desta estratégia para a Linx, pois hoje ela não tem nenhuma receita deste segmento. Logo, desde que o mercado continue a existir, mesmo com preços e margens menores, representará uma nova receita para Linx. O principal ponto a monitorar nesta estratégia agora é sua execução. Será preciso treinar e adequar a mentalidade do seu canal de distribuição para vender um produto diferente – o serviço de adquirência – além de ajustar a forma de remuneração dos executivos e vendedores para incentivos efi cientes.

Reiteramos que adquirência é apenas uma das diversas novas vias de crescimento da empresa. Consideramos omnichannel e retail intelligence como dois outros vetores atrativos, ainda em estágios iniciais de desenvolvimento.

 

A estratégia de investimento da Cardinal Partners em Linx

Iniciamos nosso ciclo de investimento em Linx em meados de 2017. Enquanto predominava ceticismo quanto à recuperação do setor de varejo, prejudicando sua operação básica, fi cávamos crescentemente otimistas com as possibilidades das novas vias de crescimento – omnichannel, meios de pagamento e retail intelligence. Em particular, desde 2015, elas começaram a mostrar resiliência no seu crescimento de receita: a receita de cross sell compensava a fraca receita recorrente daquele momento (Figura 4), garantindo uma taxa de crescimento de receita de dois dígitos, mesmo sendo mais adverso momento econômico do País.

 

Figura 4: Taxa de crescimento da receita bruta de Linx – composição

Nota: Outros inclui (1) crescimento de clientes ativos, (2) novos clientes e (3) abertura líquida de loja. Fonte: Linx.

 

Este foi o gorila em que focamos e nos baseamos para investir originalmente, tendo a paciência de entender que a condição ainda adversa do varejo (o passe de bolas) evoluiria no seu tempo para uma melhora cíclica nos anos seguintes. O lançamento de Linx Pay ocorreu no 4T18, adicionando atratividade e tração a esta estratégia pela sua magnitude.

Durante os três anos a partir de 2019 vemos os seguintes ventos de cauda para a empresa: Linx Pay tende a ganhar tração, transformando-se numa relevante linha de negócio em tamanho; omnichannel tende a se expandir (atualmente os primeiros contratos com grandes varejistas [6] ainda estão em fase de implantação de cerca de oito meses); retail intelligence permanece pequeno, mas acreditamos que crescerá gradualmente; a melhora cíclica da economia acelerará o crescimento de todas suas linhas de negócio, destravando a demanda reprimida por serviços de tecnologia dos últimos anos.

Uma outra via de crescimento – expansão geográfica – nos anima menos, por entendermos que o negócio de tecnologia tem particularidades locais. De qualquer forma, sua importante entrada no México em 2017 (comprando a Synthesis) não é desprezível, mesmo ainda não mostrando resultados impactantes ou sinais mais concretos de grandes oportunidades de cross sell com sua operação brasileira.

O setor de tecnologia apresenta a terceira maior contribuição para o retorno dos investimentos acumulados da Cardinal Parnters até o presente (Figura 5), que, além de Linx, inclui Totvs, cujo ciclo de investimento teve início no fim de 2016.

 

Figura 5: Atribuição de performance por setor

Nota: Desde o início da gestão em 23-mai-16. Fonte: Cardinal Partners.

 

 

Marcelo Audi
Abril de 2019


 


[1]
 https://youtu.be/vJG698U2Mvo.
[2] CHABRIS, Christopher and SIMONS, Daniel. The Invisible Gorilla – And Other Ways our Intuitions Deceive Us . Crown Publisher, 2010, p-6. Por essa pesquisa, os pesquisadores ganharam o prêmio Nobel de psicologia em 2004.
[3] Ranking de vantagens competitivas da Cardinal Partners, composta por 5 fatores de competição,
cada um podendo ter uma nota entre zero e 2.
[4] Em adição, há R$ 214 milhões de earn out , pagamento complementar em função de atingimento de metas para os sócios vendedores que permaneceram na operação.
[5] TEF (transferência eletrônica de fundos) é um sistema que viabiliza as transações fi nanceiras de maneira eletrônica numa venda com cartão, inclusive integrando a emissão de nota fi scal eletrônica e envio de dados para a Receita Federal, proporcionando agilidade e segurança para o varejista; o serviço de conciliação confere o extrato da venda feita pela maquininha do adquirente com o extrato bancário, evitando fraudes; o serviço de split divide a liquidação das transações entre seus recebedores de maneira segura (por exemplo, o direcionamento da conta num restaurante entre o estabelecimento e o garçom como gorjeta, ou o envio da parte do valor de uma venda online de market place devido ao fornecedor do produto).
[6] Boticário, Centauro, Hering, Marisa, Ri Happy, DPSP, Restoque, YouCom, AMC (maior gestor de marcas de moda da América do Sul, incluindo Colcci, Sommer, Forum e Triton, entre outras).

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